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Pícaro de Mente
«Evite acidentes: faça tudo de propósito. Leia o Pícaro!» (Carlito Maia)
Por Jairo Máximo

Era de Aquário, era da fraternidade. Ano bissexto do calendário gregoriano. Noite de 30 de novembro de 1984. Nasce no Alto Tietê, em Mogi das Cruzes, São  Paulo, o jornal Pícaro liderado por um grupo de jovens inquietos e idealistas que lutam igual a milhões de brasileiros para que o Brasil volte a ser uma nação democrática e os militares golpistas regressem ao quartel. «Eu quero votar para presidente» era a nova ordem da política nacional. Ao mesmo tempo, o indesejável general Newton Cruz anuncia que deixa a tropa. Boys don’t cry toca na rádio. Bingo!
Fim da ditadura militar brasileira (1964-1985). «Nossos valores são outros», decretam os picaretas.

E foi assim, neste contexto político, social e cultural que o Pícaro tendo como objetivo unir jornalismo, humor, arte e pensamento crítico, publicou 17 edições, fruto da persistência de uma trupe eclética de colaboradores —jornalistas, fotógrafos, cartunistas, chargistas, ilustradores, publicitários, poetas, escritores, artistas plásticos, historiadores, atores, músicos, advogado, biólogo, roteirista de cinema, cantora, diretor de teatro—, além do apátrida universal Ubú Rei e dos fiéis anunciantes, assinantes e doadores que conjuntamente fizeram do pequeno fanzine Pícaro um atípico jornal mogiano que faz parte da história do jornalismo contemporâneo brasileiro.
«Haja hoje para tanto ontem», disse Paulo Leminski.

De fanzine a jornal. O Pícaro — que nasceu como fanzine para reverenciar a geração beat e em menos de um mês depois abriu o olho como um jornal anarquista mogiano—, é um filho de uma mãe e três pais. Durante sua efêmera existência ele passou por altos e baixos. Apoio crescente de ilustres plumas felinas. Uma sede sujeita a enchentes constantes. Crises econômicas agônicas. Mas mesmo assim os picaretas unidos jamais foram vencidos.  Não se rendiam diante das adversidades e conseguiam tirar leite da pedra. A cada novo número publicado gerava novas ideias na mente.

Baseado na chuva. Em sua segunda sede, localizada no antigo Largo 1º de Setembro, na quatrocentona terra do caqui, quando chegavam às tormentas de verão, a angústia invadia os redatores porque em muitas ocasiões a redação inundava-se de tal maneira que a água e o barro chegaram a destruir várias pastas do rudimentar Acervo do Pícaro que continham originais de artigos, desenhos, fotografias e ilustrações publicadas ou originais prestes a serem publicados. O pouco que a água não levou um dos picaretas guardou com esmero pensando na memória histórica. Contudo, depois de cada tormenta, tropical ou econômica, o jornal continuava crescendo mentalmente (novos colaboradores), em formato (novas páginas) e, principalmente, recebendo o apoio econômico vital de atrevidos comerciantes, empresários e artistas plásticos que apostaram na publicação que procurou ser independente economicamente e livre editorialmente. Era a marca da casa.

 

Viagem a um passado recente. Relendo todas as edições do jornal, mais de três décadas depois de seu desaparecimento, no mês do cachorro louco de 1988, é possível encontrar muita coisa válida e atual até hoje. Dar voz às mentes inquietas que se alimentavam do saber era o papel do Pícaro.

Eis aqui algumas palavras de ontem.

Jughurta Lourival Glória (1917-1980). Professor e político.

Caluniadores, infames, mensageiros da discórdia, são como procelárias que batem as asas anunciando tempestade. (Trecho do discurso político Ao Povo Mogiano), que faz parte do caderno Pícaro Ilustrado, dedicado inteiramente ao injustiçado e maltratado político e professa mogiano.

Aliás, o nome da redação do jornal Pícaro era Jughurta Lourival Glória; com muita glória. 

Ignácio de Loyola Brandão (1936). Escritor e jornalista.

Literatura não é atualidade. Literatura é literatura. Nós homens somos muitos complicados. Os homens inventaram o machismo, o preconceito, status, posições, eficiência e não têm condições de sustentar, segurar a barra…
 

Fernando Gabeira (1941). Jornalista, escritor, político e ex- guerrilheiro.

Alô, alô. Eu sou a Tami Gabeira! – Fala Tami! Não quer falar? Então o papai vai falar, para você ouvir. Alô, alô! Aqui quem está falando é o papai da Tami! A liberdade é um processo contínuo.

Tami é irmã da surfista Maya Gabeira, reconhecida pelo Livro Guinness como a mulher que surfou a onda mais alta da história.

Cacá Rosset (1955). Ator e diretor de teatro.

O teatro depende do público. Ele não é uma atividade privada. O teatro sem público não existe. O teatro é uma arte primitiva; alquimia.

Cacá Rosset era simpatizante do jornal e chegou a colaborar economicamente com a publicação. Em 1988, durante uma reportagem sobre o jornal na extinta TV Gazeta, de São Paulo, ele elogiou ao vivo o Pícaro com um exemplar na mão, acompanhado pelo grafiteiro John Howard, o artista plástico Maurício Chaer e o locutor Eduardo Fortunato.
 

Glauco (1957-2010). Cartunista e desenhista de HQ. 

Glauco em São Paulo, foto de Marisa Uchiyama

Não transo partido político. Entrei e sai da droga, sem perder o humor e a cabeça. Todos têm um pouco de louco. Pícaro, você nunca dançou pelado na frente do espelho?

Glauco foi colaborador do Pícaro. Junto com Angeli e Laerte faz parte do inclassificável grupo «Piratas do Tietê». 
 

Akinori Nakatani (1943-2023). Ceramista.

Akinori Nakatani em Mogi das Cruzes, foto de Nelson Rubens Spada

Apesar de fazer esculturas, considero-me antes de um escultor, um ceramista. Eu acho que um artista deve pensar numa peça que não existe. Para o artista é bom ouvir crítica do crítico. Mas pouco crítico de arte sabe falar da obra.

O desaparecido nipo-brasileiro Akinori Nakatani foi um discreto colaborador do Pícaro, ou seja, seu nome não aparece no expediente do jornal, mas ele doou duas valiosas esculturas em cerâmica de sua autoria para tirar o jornal da agonia econômica. Salve Naka! Arigatô.

 

Cláudia Wonder (1955-2010). Travesti, cantora e compositora.

Não quero ser homem nem mulher: sou travesti.

Cláudia Wonder, musa do jornal Pícaro. Em 1987 realizou um show de rock solidário em Mogi das Cruzes em prol do jornal.
 

Ubú Rei (França, século XIX). Apátrida universal.

Sou único porque sou aquele que fala a verdade. Roubei, matei e não escondo de ninguém. Não sou materialista. Acredito em Deus, especialmente nos debates públicos na TV.

Ubú Rei, personagem universal criado pelo teatrólogo e poeta francês Alfred Jarry (1873-1907), pai da patafísica, foi agente secreto do jornal que chegou a corromper publicamente os picaretas. Concedeu um emprego público aos redatores por terem trabalhado em sua vitoriosa campanha política manipulando a informação. «É deste jornalismo que eu gosto: aquele que beija o santo, passa no caixa e manipula até Deus», diz Ubú Rei.
 

Wilde Weber(1913-1994). Chargista, cartunista e artista plástica.

Com a charge você pode dizer coisas que a palavra não pode. Eu nunca faço um trabalho contra a minha opinião. Isto não! O papel da imprensa é informar, ensinar e influir.
 

Pietro Maria Bardi (1900-1999). Jornalista, escritor e cofundador do MASP (Museu de Arte de São Paulo).

Quando abri o MASP, a primeira coisa que fiz foi comprar, pessoalmente, um Di Cavalcanti, um Lasar Segall e um Cândido Portinari e doar à Galeria de Arte Moderna de Milão. Não expuseram porque eram pintores do terceiro mundo.
 

Paulo Leminski (1944-1989). Poeta, ensaísta, biógrafo e tradutor.

Você não pode impedir o Estado de interferir na Cultura, mas o nosso papel enquanto intelectuais independentes, enquanto pícaros —e eu gostaria que você colocasse aí que eu também sou Pícaro—, é o de continuar produzindo cultura, picarescamente.

Paulo Leminski foi colaborador do jornal. «Eu tenho um poema para vocês. Nem sabia o que fazer com ele. Este é para nós —picarescos. Este poema é igual onça que vai beber a água no lugar certo. Vai cair direitinho no jornal nosso. Sem dúvida é perfeito «Merda e Ouro» publicado no Pícaro».

 

Tarso de Castro (1941-1991). Jornalista e editor.

Sou parcial mesmo. Não acredito em jornalista que não seja parcial. No mais, boa noite de todo meu coração Mogi das Cruzes… Adeus! Pícaro: quando eu morrer você põe o nome do banheiro do jornal Pícaro de banheiro Tarso de Castro.

É lógico que o nome do banheiro do jornal era «Tarso de Castro». Foi batizado assim bem antes do gaúcho morrer. Um ato de homenagem em vida ao ilustre cofundador do jornal carioca O Pasquim.


Antônio Cícero (1945-2024). Poeta, filósofo e compositor.

«Felicidade», poema que Antônio Cícero cedeu aos picaretas.
 

John Howard (1939-2024). Artista plástico e grafiteiro.

A permanência de um grafite define-se pela sua efemeridade. Deus se come-se. A Bienal não agita o mundo das artes como deveria.

John Howard, considerado o pai do grafite brasileiro, foi colaborador do jornal. Inclusive chegou a presentear leitores do Pícaro com desenhos originais de sua autoria.


Antônio Bivar (1939-2020). Escritor, dramaturgo e jornalista.

A vida é uma eterna permuta.

Antônio Bivar foi colaborador do jornal. Seu artigo intitulado «De atos solitários, vedetes e pomba-gira», publicado no número quinze, foi recebido pelos editores e leitores como uma masturbação coletiva onde todos gozaram sem trauma.
 

Carlito Maia (1924-2002). Publicitário e filósofo popular.

Não tenho nada material, abri mão de tudo e vivo sem medo nenhum, porque nada tenho a perder. Não me sinto preso a ninguém, nem a nada. Vivo livre e solitário qual uma árvore, porém solidário, como uma floresta.

Carlito Maia foi colaborador do jornal. É autor do slogan «Evite acidentes: faça tudo de propósito. Leia o Pícaro!». O texto de sua autoria intitulado «País de Merda», com ilustração de John Howard, publicado no número dezesseis, vale a pena ler de novo. É atemporal.
 

Denise Stoklos(1950).  Mímica, atriz, autora e diretora.

Gostaria de falar devagar, pelo menos pensar bastante. Ou as coisas são aprofundadas ou então não valem a pena. Condensar é a possibilidade máxima. Não faço parte de nenhuma associação, partido político, de nada. Mas acho que não estou sozinha.
 

Vânia Toledo (1945-2020). Fotógrafa e socióloga.

Eu vivo na era do eu, na era do pós, do tudo. Eu sou inteira! Eu tenho um vício. Meu vício é gente, é a minha droga. Todo anarquista me fascina.
 

Itamar Assumpção (1949-2003).  Músico e médium.

A minha música é a minha música; não há escola. O negro no Brasil é inferior porque é socialmente inferiorizado. Sou médium musical, não estou sendo teórico, nasci em um terreiro e tenho uma mediunidade.

Itamar Assumpção em São Paulo lendo o Pícaro, foto de Lailson Santos

Atualmente em São Paulo encontra-se o primeiro museu virtual de um artista negro brasileiro, que apresenta o acervo do artista, com mais de 2 mil obras reunidas.
 

Roberto Piva (1937-2010). Poeta

Eu já disse num poema meu que a melhor coisa que fiz em 68 foi 69. Cristo é o Dioniso de ressaca. Eu sou um hóspede incômodo da literatura brasileira.

Roberto Piva cedeu aos picaretas o poema «Flash de jazz meia-noite» publicado no número dezessete do jornal.

Outros nomes. Lançaram outras palavras e ideias nas páginas do jornal: Márcia Denser, Giovanna Picillo, Heder Cláudio, Adílson Spindola, Dirceu Roque de Sousa, Jam, Marcelo Tass, Laerte, Jorge Mautner, Fausto Silva, Ignácio de Loyola Brandão, Antônio Peticov, Enio Mainardi, Robson Regato, Vanice Assaz, Edvaldo de Jesus Teixeira, Walter de Sousa, Maurício Andere, Sérgio Bianchi, Bráulio Mantovani, a banda de punk rock Inocentes, os fundadores do jornal anarquista Planeta Diário, entre outras personalidades.

 

Mutante. A iconografia gráfica do jornal persiste até hoje. Os personagens «Picareta», criado pelo artista plástico e poeta João Castilho Neto, e «Fininho», criado pelo cartunista Fernando Machado, continuam ativos nas mãos de seus criadores. Impossível dissociar o jornal Pícaro da imagem dos personagens Picareta e Fininho e suas andanças pelos tortuosos caminhos da alta e baixa cultura. Por outro lado, durante a existência do jornal era possível encontrar em muitos muros, paredes e banheiros públicos de Mogi das Cruzes e São Paulo a frase pichada: «Leia o Pícaro». 

A morte não é o fim. Desde o primeiro número, o Pícaro contou com o apoio de destacadas personalidades de diferentes setores da cultura brasileira. Muitas delas já partiram para outra galáxia, mas continuam presentes na mente dos picaretas vivos. No expediente do jornal consta registrado um total de 115 pessoas progressistas que apoiaram o Pícaro, sem partido nem benefício.


 

O personagem Picareta, criado por João Castilho Neto está incorporado à iconografia do jornal Pícaro;  Picareta, escultura cerâmica. Obra de João Castilho Neto e Maurício Chaer.

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40 anos de Pícaro. Pique-pique? O que os picaretas nunca imaginaram, nem nas viagens de LSD, é que no final da segunda década do século 21, um inepto militar retirado de extrema direita e sua tropa de acólitos nostálgicos da ditadura, utilizariam a democracia para chegar ao poder e governar o Brasil, entre 2019 e 2022. Eles passaram e passarão mas o Pícaro existiu e continuará existindo porque está totalmente digitalizado e seus 40 anos devem ser comemorado hoje e sempre. “Acho o ¡Pícaro! do caralho e tudo o que ele traz em suas páginas. Vocês existem e a gente fica sabendo disso. Isto é a tal comunicação”, escreveu o filósofo popular Carlito Maia, um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores. Enfim, andar e contar é o papel dos picaretas.

Ilustração de Cris Eich

 

Leia este e outros artigos no Blog do Pícaro https://blogdopicaro.wordpress.com/2024/11/30/picaro-de-mente/

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